O APELO DA ALMA
A principal tarefa da filosofia é responder ao apelo da alma. É procurar compreender o sentido de nossas dores e nossos medos e, assim, nos libertar da sua influência.
A filosofia exerce atração sobre nós quando chegamos ao fim de nossas forças. A sensação persistente de que algo não está certo em nossa vida e o desejo intenso de recuperar o equilíbrio e o bem-estar anteriores não nos abandonam. O medo da morte e da solidão, as perturbações a respeito de amor e sexo e a impotência diante da nossa raiva e de nossas ambições desmesuradas levam-nos a formular as primeiras perguntas filosóficas sinceras.
É verdade: não há nenhum sentido aparente e óbvio para nossa vida. A crueldade, a injustiça, o desconforto físico, as doenças, os aborrecimentos e transtornos, grandes e pequenos, são fatos comuns de todos os dias. Então, o que fazer a respeito? Como podemos viver uma vida digna, apesar da dor e do sofrimento no mundo exterior e da instabilidade de nossas emoções? Como deixar de sucumbir a uma insensibilidade desesperadora e, como um animal de carga, apenas aguentar o tédio e o fardo das responsabilidades indesejadas?
Quando a almas grita seu apelo, é sinal de que chegamos a um estágio necessário e maduro de reflexão sobre nós mesmos. O segredo é não ficar bloqueado nesse ponto, perturbado, torcendo as mãos, mas ir em frente decidido a curar a própria vida. O que a filosofia nos pede é uma opção pela coragem. Seu remédio é expor, sem hesitar, inflexível e obstinadamente, as premissas falsas e enganadoras nas quais baseamos nossa vida e nossa identidade.
O VERDADEIRO PROPÓSITO DA FILOSOFIA
A verdadeira filosofia não envolve rituais exóticos, liturgias misteriosas ou crenças originais. Também não se resume a teorias e análises abstratas. A verdadeira filosofia é, evidentemente, o amor à sabedoria. É a arte de viver bem a vida. Como tal, precisa ser resgatada dos gurus religiosos e filósofos profissionais para não se deixar explorar como um culto esotérico, ou um conjunto de técnicas intelectuais desconexas, ou um jogo de quebra-cabeça que sirva apenas para exibir sua inteligência. A filosofia é destinada a todos e só é praticada de modo autêntico por aqueles que a associam à ação no mundo, visando uma vida melhor para todos.
O propósito da filosofia é iluminar os caminhos de nossa alma que foram contaminados por convicções infundadas, desejos descontrolados, preferências e opções de vida questionáveis que não são dignos de nós. O principal antídoto a tudo isso é um autoexame minucioso aplicado com bondade. Além de erradicar as doenças da alma, a vida de sabedoria também pretende despertar-nos de nossa apatia e introduzir-nos no caminho de uma vida ativa e alegre.
A habilidade no uso da lógica e do debate e o desenvolvimento da capacidade de definir as coisas com seus nomes certos são alguns dos instrumentos que a filosofia nos oferece para alcançar a clareza de visão e a tranquilidade interior, que constituem a felicidade verdadeira.
Essa felicidade, que é a nossa meta, deve ser entendida com exatidão. A felicidade costuma ser confundida com prazer ou lazer experimentados passivamente. Esse conceito de felicidade só é bom até certo ponto. O único e precioso objetivo de todos os nossos esforços é uma vida em expansão no caminho da plenitude.
A verdadeira felicidade é um verbo. É o desempenho contínuo, dinâmico e permanente de atos de valor. A vida em expansão, cuja base é a intenção de buscar a virtude, é algo que improvisamos continuamente, que construímos a cada momento. Ao fazê-lo, nossa alma amadurece. Nossa vida tem utilidade para nós mesmos e para as pessoas que tocamos.
Nós nos tornamos filósofos para distinguir o que é realmente verdadeiro do que é meramente o resultado acidental do raciocínio incorreto, das avaliações erradas adquiridas de modo imprudente, dos ensinamentos bem-intencionados mas equivocados de pais e professores e da aculturação que absorvemos sem refletir.
Para aliviar o sofrimento da alma, precisamos nos entregar a uma introspecção disciplinada, na qual realizamos exercícios mentais para fortalecer nossa capacidade de descobrir quais são as convicções e os hábitos sadios e quais são os prejudiciais causados pela negligência.
A VIDA EM EXPANSÃO DEPENDE DA AUTOSSUFICIÊNCIA
Não é por meio de técnicas que se consegue ter uma vida florescente. Ninguém pode se tapear usando truques para viver uma vida bem vivida. Também não adiantam coisas do tipo “cinco regras práticas” ou os dogmas prescritos por alguma figura carismática. Ter uma vida em expansão depende da nossa resposta àquilo que cabe exclusivamente a nós.
Viver uma vida extraordinária significa elevar nossa estatura moral cultivando o caráter. Os despreparados ficam ruminando sobre o que acontece em suas vidas. Desperdiçam um tempo precioso lamentando-se ou desejando que as circunstâncias fossem diferentes: “Se ao menos eu vivesse em uma casa melhor, ou em uma cidade melhor, tivesse outro marido, um emprego mais interessante, mais tempo para mim...”. Os moralmente preparados, em vez de se ressentirem ou se esquivarem de sua verdadeira situação e de seus deveres, sentem-se gratos por eles e entregam-se inteiramente a seus deveres para com a família, os amigos, os vizinhos e o trabalho. Quando sucumbimos aos queixumes, diminuímos nossas possibilidades.
A supervalorização do dinheiro, da posição social e da competição envenena nossos relacionamentos pessoais. Não podemos ter uma vida florescente enquanto não moderarmos nossos desejos e constatarmos como eles são superficiais e passageiros.
Epicteto. A arte de viver: o manual clássico da virtude, felicidade e sabedoria. Rio de Janeiro: Sextante, 2018.
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