Por Juliana Maués
Muitos dos temas que acompanham Tanizaki Junichiro estão já presentes no conto Shisei, publicado em 1910. Um deles é o jogo entre um ser interior e um exterior, que, na forma de um embrulho, modifica a aparência e transforma profundamente o primeiro. Em Shisei, o embrulho é a tatuagem cuja inscrição na pele de uma jovem é decisiva para que ela vá de uma tímida maiko a uma poderosa e autoconfiante cortesã. Mais do que um processo normal de amadurecimento, o que ela experimenta é uma transformação no papel de gênero que ocupa naquela sociedade 1 — transformação materializada na tatuagem, cujas características formais a aproximam do masculino, e na sua passagem de um lugar passivo a um ativo dentro da narrativa.
Shisei se passa em Yoshiwara, a zona de prostituição de Edo, antiga Tóquio, no começo do século 19 e acompanha o tatuador Seikichi na busca pela jovem perfeita em cuja pele deixaria sua obra-prima. Aquela que preenche suas expectativas é uma maiko, uma jovem treinando para ser cortesã. Ele a convida ao seu estúdio, onde lhe mostra uma pintura e um pergaminho, ambos retratando mulheres triunfalmente posicionadas sobre os corpos dos homens que arruinaram suas vidas tentando possui-las. A maiko ameaça ir embora, mas, quanto mais olha as imagens e escuta a fala de Seikichi, mais percebe-se parecida com aquelas mulheres. Seikichi a droga. Ela adormece — e ele trabalha: uma grande aranha viúva-negra é tatuada nas costas da jovem. Ao ver sua obra concluída, exclama: “Hoje, não há mulher no Japão que se compare a você. Os seus velhos medos se foram. Todos os homens serão suas vítimas”. Ao despertar, a jovem está totalmente mudada. Então, ela toma a palavra, dirigindo-se a Seikichi: “Todos os meus velhos medos foram varridos — e você é a minha primeira vítima”, diz, enquanto lhe atira um olhar “tão brilhante quanto uma espada”.
Nos primeiros trabalhos de Tanizaki, Suzuki percebe uma idealização da era Tokugawa aliada a uma dura crítica à civilização Meiji, o que estaria nas primeiras linhas de Shisei 2, mas também na representação idealizada da cortesã madura como uma mulher com total controle não apenas do próprio corpo, mas daqueles dos homens dispostos a sacrificarem-se por ela. Esse sentimento de idealização, porém, é enganoso. Em uma leitura mais aprofundada, percebemos que, para ter um papel ativo na história, a maiko passa por uma transformação na sua identidade de gênero — nesse contexto, não há tal coisa como um papel forte e, ainda assim, feminino. A transformação é possível graças ao caráter performativo do gênero, no sentido de que não é inato ao indivíduo, mas, conforme Butler, relacionado a e construído em práticas e comportamentos sociais. Não é também algo estável que permanece o mesmo durante toda a vida de alguém. Pelo contrário, é fluido e pode mudar em resposta a diferentes contextos, externos e internos. No caso da maiko em Shisei, a mudança vem pela aquisição de dois traços masculinos que ecoam na sua identidade de gênero — ambos materializados na tatuagem.
O primeiro é a absorção pela maiko da alma de Seikichi. Tanizaki aponta isso na fala do narrador (“Ele sentiu seu espírito dissolver-se na tinta preto-carvão que manchava a pele dela”) e na do próprio tatuador (“Para fazê-la verdadeiramente bela, eu derramei minha alma nesta tatuagem”). Para Atkinson, “a imagem do espírito dele a dissolver-se na tinta a penetrar a pele da jovem mulher sugere que o interior dele agora é o exterior dela [...]”. Conforme Chino (2003), é sobre e acima dos corpos sexuados de macho e fêmea que as categorias de gênero socialmente definidas são estabelecidas. Logo, o que se instala sobre o corpo da maiko junto com a tatuagem não é o sexo biologicamente determinado ou a sexualidade de Seikichi, mas aquilo que o embrulha: a sua identidade de gênero. Incorporando uma identidade de gênero masculina, a jovem passa a representar um papel ativo dentro da narrativa e cabe a ela ditar os passos finais da trama, função que, nesse contexto, é interditada ao feminino.
O segundo dos dois traços masculinos adquiridos pela maiko se expressa na visualidade da tatuagem. O motivo evoca o jorogumo ou aranha-cortesã e faz referência ao gênero literário do dokufumono, o conto da “mulher venenosa”, popular no começo do período moderno, que tem como protagonista uma mulher cujos sexualidade livre e papel ativo a colocam como uma ameaça. Tão ou mais importante do que o motivo escolhido por Tanizaki, porém, é o tipo de tatuagem. Trata-se de uma tatuagem figurativa, grande e colocada nas costas da sua portadora. Em relação aos dois principais tipos existentes no período Edo, ela está claramente mais próxima do horimono ou irezumi do que do irebokuro. Cada um desses tipos associa-se de modo especial ao masculino ou ao feminino e compreender essa afiliação é essencial para a nossa argumentação.
Kitagawa Utamaro, Onitsutaya Azamino e Gontaro, um homem do mundo (1798-1799).
Inicialmente, é mandatório dizer que, em um nível elementar, o irebokuro relaciona-se ao gênero feminino porque a grande maioria dos corpos marcados com esse tipo de tatuagem são os de indivíduos do sexo feminino. Um dos desmembramentos do kishobori ou tatuagem votiva, o irebokuro é a forma particular desta manifestação entre dois amantes e integra as chamadas “provas sinceras de amor verdadeiro” ou shinju, modos convencionados pelos quais uma cortesã em Yoshiwara provava o seu amor, real ou não, a um cliente e que incluíam práticas como “o decepar de um dedo ou falange (yubi-kiri), o arrancar de uma unha (tsume-hanashi), a marcação da pele com as cinzas de um cachimbo japonês (kiseru-yaki) e o corte parcial ou completo dos cabelos (kami-kiri)”. Originariamente apenas um ponto, em Edo, o irebokuro apresenta-se sob forma ideográfica, consistindo no nome da pessoa amada ou votos amorosos usualmente no ombro ou no braço. Segundo Pratte, essa forma emerge quando o cliente demanda da cortesã um modo mais explícito de demonstrar seus sentimentos e o que deveria ser “[...] uma jura mútua entre duas pessoas, no contexto da prostituição [...] acaba transformando-se no fardo apenas da cortesã”. Segundo Seigle,
Para a maioria dos visitantes de Yoshiwara, a prova de amor era um bálsamo para o ego masculino; para alguns, não era nada além de um jogo. [...] Eles colecionavam esses pedaços de evidência de incontáveis cortesãs [...] para exibir aos amigos. Claramente não havia amor da parte desses homens e, mesmo assim, eles demandavam prova de que eram amados [...].
Apesar de mais frequente em mulheres, é quando o irebokuro aparece em corpos masculinos que a sua identificação não com o sexo biologicamente determinado, mas com o gênero torna-se clara. Pratte assere que a prática era também comum entre o wakashu e seu amante e, do mesmo modo que com as cortesãs, usualmente era apenas ao jovem ator que cabia ter a pele marcada. Em uma situação sexual, o wakashu é aquele identificado com o objeto passivo, então corporificando uma identidade de gênero feminina que ecoa na relação como um todo. Assim, é possível afirmar que o que caracteriza as dinâmicas de gênero nos mundos flutuantes de Edo, mais do que a comercialização da sexualidade e a transformação do erógeno em força de trabalho, é a imposição, num contexto de desequilíbrio de poder, dos desejos de outrem na forma de marcas deixadas sobre o corpo alheio. Ao feminino, cabe a submissão.
Utagawa Toyokuni I, do livro Ehon imayo sugata (c.1802).
A consolidar-se nas eras Bunka-Bunsei (1804-1829), o horimono ou irezumi é um tipo de tatuagem maior, mais elaborado e figurativo. Entre os adeptos, não há registros de mulheres antes do final do século 19. Bem distante da motivação externa do irebokuro, os homens portadores do horimono tatuam-se partindo de uma vontade própria de embelezar-se e expressar identificação com os heróis do Suikoden ou com outros tatuados, muitos deles heróis populares, como os bombeiros civis. Específico ao corpo masculino, o horimono alia-se àquele que interpreta o papel ativo, capaz de manipular os outros corpos para a satisfação dos seus desejos. É nesta segunda tradição que a tatuagem da maiko se encontra.
Para além dos corpos que habitam, o próprio estilo das tatuagens e de suas representações na cultura popular permite afiliá-las a diferentes identidades de gênero. Em seu estudo sobre gênero na arte japonesa, Chino assere que, neste universo, feminilidade e masculinidade são, apesar de não necessariamente excludentes, categorias claramente contrastantes, de tal modo que uma tradição como a da escola Kano poderia ser identificada como masculina enquanto a da escola Tosa seria feminina, independentemente do gênero dos artistas executores das obras. Análise semelhante pode ser feita da relação entre horimono e irebokuro. Gravuras do período Edo mostrando estas tatuagens nos permitem uma breve análise.
Kitagawa Utamaro, Moxibustão (título atribuído) (c.1800).
Das gravuras escolhidas para apresentar o irebokuro, apenas uma não mostra o tatuado como uma mulher. Esta, que mostra um homem sendo tatuado, o coloca de modo delicado, destacando a sua vulnerabilidade frente à dor das agulhas — e, diminuindo, portanto, a sua condição masculina. Em todas, as inscrições que constituem o irebokuro são feitas na escritura japonesa, kana, que Chino identifica como feminina, em contraste com os masculinos ideogramas chineses. Na arte japonesa, “feminilidade significa ‘pequeno, delicado, macio, modesto, efêmero, privado, calmo, harmonioso’”. Assim, outra característica do gênero feminino está no fato de que os irebokuro são inscrições delicadas, com linhas finas, cobrindo uma pequena área e facilmente escondidas, o que denuncia a sua exibição privativa. É, de fato, em um quarto privado que Utagawa Toyokuni I coloca a cortesã que, puxando a manga do robe, mostra uma tatuagem às companheiras. A naturalidade da reação das outras mulheres indica que o irebokuro não é extraordinário entre elas. A gravura é parte de uma série de Toyokuni I retratando mulheres de todas as classes e está no volume que mostra cenas das zonas de prazer. A colocação dos objetos na cena, resultando na aparência de um quarto bagunçado, indica que não se trata dos aposentos de uma cortesã de alto escalão. A simplicidade dos padrões dos robes também aponta para esta conclusão. A própria presença do irebokuro é um índice disto, já que, como Seigle aponta, cortesãs de alto escalão, graças aos seus prestígio e condição financeira, podiam evitar tatuagens mais facilmente. A tatuadora na gravura de Kitagawa Utamaro também é apresentada com uma aparência bagunçada. O penteado não tão elaborado com vários fios de cabelo soltos e o corpo em uma postura deselegante denotam a sua posição não elevada na escala social do Yoshiwara. Outra gravura de Utamaro mostra uma cortesã tentando remover um irebokuro usando moxibustão. Apesar da dor, ela exibe uma atitude calma e reflexiva, própria à representação do feminino na arte japonesa. Mesmo a mulher no ato de ser tatuada na gravura de Utagawa Kunisada tem uma aparência contida. O lugar da sua tatuagem é o mais privado de todos: a parte superior interna da coxa. A palavra tatuada é “Hanshichi”, provavelmente o nome do amante.
Utagawa Kunisada (Utagawa Toyokuni III), do livro Oyagari no koe (início do século 19).
Enquanto o irebokuro é um trabalho pequeno e delicado, o horimono tem um estilo agressivo, composto por diversas camadas cobrindo largas extensões do corpo. Um dos primeiros formatos em que ele foi produzido, o nukibori, consiste em um único motivo figurativo sem padrão de fundo, geralmente aplicado nas costas — exatamente como a aranha tatuada descrita em Shisei. O desenvolvimento do horimono tem fortes vínculos com a novela chinesa Shui Hu Zhuan (Suikoden, em japonês), especialmente a edição ilustrada por Utagawa Kuniyoshi, da onde vem a primeira gravura escolhida para exemplificar as características masculinos do horimono. Na representação do herói Rorihakucho Chojun, Kuniyoshi elabora uma complexa cena de ação na qual Chojun é alvo de uma saraivada de flechas. Sua postura agressiva é enfatizada pela tatuagem que ele porta, uma serpente adornada por galhos de pinheiro. O personagem tatuado não é retratado de modo reflexivo ou contido, mas expansivo, agindo com bravura e coragem. Ele também não é passivo: mesmo que o herói tenha flechas atiradas em sua direção, sua ação é de ataque, raivosamente segurando a espada entre os dentes. Uma expressão furiosa também está no yakusha-e de Utagawa Kunisada, no qual o ator Bando Kamezo I é retratado como o andarilho Hinotamakozo. O corpo fortemente tatuado revela uma bilateralidade entre as tatuagens, uma composição de cardos, e a agressividade patente na postura corporal, com os músculos fortemente tensionados, e na expressão facial, com olhos estrábicos e sobrancelhas diagonais descendentes na direção do nariz. A tatuagem reforça a atitude feroz, mas a presença do horimono em personagem tão agressivo e composição tão tensa também estende essas características à própria tatuagem, o que a aproxima ainda mais da caracterização do masculino que, segundo hino, “significa ‘grande, elevado, forte, monumental, permanente, público, unificado, feroz, agressivo’”. Mesmo quando os personagens tatuados em representações do horimono não desempenham ação agressiva, a agressividade permanece na composição das gravuras, usualmente elaboradas de um ângulo próximo e com intrincada combinação de cores e padrões, que tornam a gravura densa e impedem que o olhar repouse tranquilamente sobre elas. Isso está bem exemplificado na gravura de Toyohara Kunichika. Enfim, é necessário constatar que, em contraste com o irebokuro, o horimono é feito para ser visto 3, logo ele pertence mais à vida pública masculina do que ao ambiente doméstico feminino.
Utagawa Kuniyoshi, “Rohihakucho Chojun”, da série Tsuzoku Suikoden goketsu hyakuhachinin no hitori (c.1845).
Utagawa Kunisada (Utagawa Toyokuni III), “Ator Bando Kamezo I retratado como Hinotamakozo”, da série Kinsei Suikoden (1862).
Conclusão
De volta a Shisei, quando a maiko diz as linhas finais a Seikichi, nas quais ela o coloca como sua primeira vítima, o narrador fala do olhar dela ao tatuador como sendo tão brilhante quanto uma espada. Esta é uma frase importante. Primeiramente porque até então a jovem era aquela sendo vislumbrada, olhada e encarada. Em segundo lugar, porque a metáfora elaborada por Tanizaki é construída a partir de uma comparação com uma espada. Logo, estas linhas sintetizam meu argumento nas últimas páginas. Primeiramente, colocam a personagem feminina em um papel ativo, como a dona do olhar, e, em seguida, a associam a um objeto comumente posicionado no universo masculino. Assim como a filha do rei dragão, para adentrar o paraíso budista, teve que passar por uma transformação instantânea de um ser feminino para um masculino, a maiko, para ser empoderada como uma mulher com total controle sobre o próprio corpo no universo de Yoshiwara, teve que mudar de um papel de gênero feminino para um masculino. Embora em Shisei o catalisador não seja um elemento religioso tal qual o Sutra do Lótus no caso da filha do rei dragão, é inegável que o objeto escolhido por Tanizaki para proporcionar a transformação também é investido de poder sobrenatural na narrativa. Neste aspecto, é bastante apropriado que ele tenha escolhido uma tatuagem e, mais especificamente, o horimono. Em um sentido primário, porque sendo uma tatuagem ela é inscrita na superfície do corpo, funcionando como um embrulho que, do mesmo modo que o gênero, não é inato, mas inscrito sobre o corpo biológico inato. Em um segundo sentido, como buscou-se demonstrar ao longo deste artigo, a escolha do horimono e não do irebokuro, permite a identificação ao gênero masculino e aponta para a transformação pela qual a jovem maiko passa.
Toyohara Kunichika, “Atores Kawarazaki Gonjuro como Takaramusubi no Gon [direita], Ichimura Uzaemon XIII como Tachibana Hishizo [centro] e Nakamura Shikan IV como Sanba Jafuku [esquerda]”, em Sanpuku soroe shi'iki no shirataki (1863).
1 É importante deixar claro que, daqui em diante, quando falo em papel e identidade de gênero, feminilidade e masculinidade, refiro-me aos modos como eram entendidos e categorizados especificamente no contexto das zonas de prazer de Edo durante a era Tokugawa. Social e culturalmente definido e relacional, o gênero não pode ser discutido sem a consideração do contexto 2 “Era uma época em que homens honravam a nobre virtude da frivolidade, quando a vida não era tão dura o quanto é hoje. Era uma época prazerosa, uma época em que profissionais espirituosos poderiam levar uma vida excelente ocupados em manter ricos e bem nascidos cavalheiros em um estado de desanuviado bom humor e cuidando para que as risadas das cortesãs e gueixas nunca silenciassem” (Tanizaki, 1967). 3 A afirmação é verdadeira durante o período Edo. Posteriormente, o horimono também passa a ser escondido, especialmente pela sua associação com a Yakuza.
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