Dez da noite. Yoshiwara 吉原 ferve. Os cabelos desarrumados da prostituta aludem à atividade sexual, assim como o futon azul e os lenços higiênicos sobre a pequena almofada vermelha. Com ar sapeca, a moça lê uma carta, talvez do cliente milionário, quem sabe do amante secreto.
Em destaque, um hossu 払子, espanador feito de crina de cavalo bastante utilizado por monges budistas e que, quando associado a garotas de programa, remete à lenda de Ikkyu 一休宗純 (1394-1481) e Jigoku Dayu 地獄太夫, a cortesã do Inferno — que, quando menina, usava o nome Otoboshi 乙星.
De origem samurai, Otoboshi perdeu o pai em combate e, sem alternativas, coube à família deixar tudo para trás e escapar. No trajeto, porém, depararam-se com criminosos, que assassinaram a mãe de Otoboshi, então com 4 anos, e a venderam a uma negociadora de crianças para bordéis, que a despachou para um prostíbulo em Sakai 堺市, cidade portuária próxima a Osaka 大阪府. Eram tamanhos sua beleza e talento que, em pouco, Otoboshi se tornou uma renomada alta cortesã tayu 太夫. Convencida de que sua condição provinha dos maus atos praticados em vidas pregressas, a jovem trocou de nome para Jigoku 地獄 e, como punição, exigiu que suas vestimentas fossem bordadas com imagens do Inferno, na esperança de expiar os pecado e renascer na Terra Pura.
Na imagem de Utagawa Kuniyoshi 歌川国芳 (1798-1861), o centro do quimono é dominado pela figura de Enma 閻魔, rei do Inferno, diante de uma mesa a consultar o pergaminho dos bons e maus atos, de modo a julgar os azulados espíritos prostrados diante de si. Na parte inferior direita, o demônio pesa uma alma na balança do carma enquanto, ao lado, o oni 鬼 obriga um condenado a assistir no espelho o replay do assassinato cometido em vida. Na manga esquerda, no Paraíso, o Buda 仏 e bodisatvas 菩薩 contemplam cheios de dó os sofrimentos desdobrando-se à sua frente.
Habitava a região um excêntrico monge zen-budista de nome Ikkyu, frequentador assíduo de bordéis, onde encontrava, além de sexo e saquê, virtude em meio ao vício. Em certa ocasião, aconteceu de Ikkyu visitar Jigoku Dayu. Curiosa pela figura maltrapilha, a cortesã concorda em recebê-lo, ordenando às serviçais que trouxessem chá e uma refeição vegetariana, em concordância com os votos monásticos. O monge, contudo, solicita saquê e carpa grelhada. Ao testemunhar o suposto homem santo emborcar o álcool e destrinchar o peixe, Jigoku suspeita estar diante de um charlatão.
Para testá-lo, convoca jovens gueixas para entretê-lo com música e dança. Torto de bêbado, Ikkyu acompanha as garotas no sururu. Decepcionada, Jigoku abandona o aposento, momento em que discerne estranhas sombras nas portas corrediças: o monge requebrava com esqueletos! Ao retornar, todavia, tudo parecia normal. Ikkyu festeja até desmaiar e é arrastado aos aposentos da cortesã. Na madrugada, o homem desperta e rasteja até a varanda para vomitar no lago do jardim. Fino.
No vômito, a carpa — ainda viva.
Ao perceber estar na presença de um indivíduo incomum, Jigoku questiona Ikkyu sobre o tudo e o nada.
“O que é a vida senão um sonho? Quem não terminará a existência um esqueleto? Somos meras ossadas recobertas de pele e desejos mundanos. Após o suspiro derradeiro, a pele se decompõe e os desejos volatilizam. Homens e mulheres, jovens e velhos, somos todos iguais.”
Tocada, Jigoku almeja se ordenar monja, porém Ikkyu a demove, afirmando ser sua profissão mais importante que a dos hipócritas ditos religiosos. A moça deveria buscar a iluminação na prostituição. Por fim, em agradecimento pela noitada, presenteia-lhe com um poema e um espanador.
Título: Gogo juji 午後十時
Série: Mitate chuya nijuyo ji no uchi 見立昼夜廿四時之内 (1890)
Artista: Toyohara Kunichika 豊原国周 (1835-1900)
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