Esta é uma história que deve ter ocorrido há centenas e centenas de anos. Não há necessidade de precisarmos o período, aqui ele não desempenha papel relevante. Basta o leitor saber que o episódio se passa num passado muito muito remoto, na era Heian. Nessa época, dentre os samurais que serviam ao regente Fujiwara Mototsune, havia um tipo chamado Goi.
Goi não era seu verdadeiro nome, e sim o nome da classe à qual pertencia. Goi — “go”, cinco, “i”, categoria, grau — era a quinta e última posição na corte imperial. Certamente gostaríamos de especificar seu nome, seu sobrenome, deixar tudo às claras, mas infelizmente esse tipo de informação não foi registrada e perpetuada nas crônicas antigas. Na verdade, deve ter sido um sujeito simples, vulgar até, a ponto de não ser digno de qualquer menção ou nota. Os autores da antiguidade, pelo visto, não se interessavam muito pelas histórias e lendas do populacho. E nem pelo populacho propriamente dito. Nesse ponto, diferiam sobremaneira dos escritores naturalistas japoneses, mas isso não significa de forma alguma que os grandes romancistas dos períodos Nara e Heian fossem mandriões ociosos. Por incrível que pareça.
Bem, seja como for, dentre os samurais que serviam ao regente Fujiwara Mototsune, havia um tipo que iremos chamar de Goi. E esse tipo será o herói da nossa história.
Goi era um homem de aparência lamentável. Pra começar, tinha baixa estatura. Nariz avermelhado. Os cantos dos seus olhos eram puxados para baixo. O bigode era ralo. As bochechas, chupadas e encarquilhadas, revelavam um queixo que parecia mais fino que o normal. Os lábios eram... Ah! Se fôssemos perfilar seus defeitos, não iríamos acabar nunca. Concluindo, o aspecto do nosso Goi era negligente, desmazelado, vergonhoso.
Como e quando um sujeito como esse chegou a servir ao regente Mototsune é um mistério. Sabemos apenas que, desde tempos imemoriais, vestia o mesmo quimono de seda desbotado, usava o mesmo chapéu desgastado e fazia todos os dias a mesma coisa do mesmo jeito, tudo sempre igual, sem jamais se aborrecer. Isso sabemos com certeza. Talvez por conta disso, se alguém olhasse para a figura desse homem, seria incapaz de afirmar peremptoriamente que ele houvesse sido criança ou jovem em algum momento. (Ah, sim! Goi passava dos quarenta anos.) Em contrapartida, tinha-se a impressão que, desde o dia do nascimento, esse homem vagueava pelas bifurcações da avenida Suzaku, ostentando seu bigode ralo e seu nariz-vermelho-como-se-estivesse-com-frio. Desde o mais alto escalão — o regente Mototsune — até as classes mais baixas — as crianças puxadoras de carros de boi —, todos inconscientemente acreditavam que assim o fosse. E não tinham a menor dúvida acerca disso.
Não deve ser realmente necessário descrevermos o tipo de tratamento que um homem com essa aparência recebe daqueles que o cercam. Na repartição pública onde Goi exercia suas funções, a atenção que os companheiros dedicavam a ele era, com pouquíssima diferença, similar à atenção devotada a uma mosca. Até seus subordinados — num total de vinte — demonstravam um desinteresse pelas idas e vindas de seu superior que beirava o absurdo. Se Goi lhes ordenava algo, eles simplesmente o ignoravam, prosseguindo com seu bate-papo. Na visão dos subordinados, a existência de Goi era como a existência do ar, ou seja, algo que existe, mas não se enxerga. Ela não chamava a menor atenção.
E, se era dessa forma com seus subalternos, naturalmente não seria diferente com seus superiores. O encarregado da repartição, o superintendente a serviço da casa imperial, ninguém se interessava por Goi. Eles ocultavam, detrás de uma aparente frieza, uma malevolência inexplicável, infantil, que se manifestava quando desejavam transmitir-lhe algo. Faziam-no simplesmente por meio de gestos. Claro que, de quando em quando, aqueles que tinham jurisdição sobre ele abriam mão desse expediente. Mas a verbalização nos seres humanos não ocorre por obra do acaso, e eles tributavam as falhas na comunicação inteiramente à incapacidade de compreensão de Goi. Nesses momentos, quando não se faziam entendidos, os superiores olhavam o homem de cima a baixo, da ponta do seu chapéu amassado à sola puída de suas sandálias de palha, e de baixo a cima, da sola puída de suas sandálias de palha à ponta do seu chapéu amassado, acabavam por emitir uma risada nasalada e, de súbito, viravam as costas. E, mesmo assim, Goi não se zangava. Era um tipo cagarolas, ababosado, um tipo que não via uma injustiça como injustiça.
No círculo dos samurais, foi tácita a eleição de Goi como alvo de zombarias. Os mais velhos usavam e abusavam da escória tacanha que era Goi para recontar piadas antigas. Os mais novos, por sua vez, não perdiam tais oportunidades para se aprimorarem nos seus jogos de palavras improvisadas, causando sensação e riso nos ouvintes. Ah! E eles jamais se cansavam de judiar de Goi, fossem criticando seu nariz, bigode, chapéu, quimono... E não era só isso.
Havia ainda a ex-esposa botocuda de Goi, da qual ele se divorciou há cinco, seis anos. E havia ainda o affair dessa ex-esposa botocuda com um monge bêbado. Muitas e muitas vezes esse era o tópico dos diálogos dos samurais. Em certas ocasiões, eles chegavam a fazer brincadeiras de natureza demasiado perversa. Se tentássemos listar essas jocosidades uma a uma... Não, não. Realmente não seria possível. Podemos mencionar, por cima, a vez em que colocaram urina no fundo do seu cilindro de beber saquê. O restante fica por conta da imaginação.
Mas Goi era insensível a tais escárnios. Completamente insensível. Bem, pelo menos aos olhos dos espectadores ele parecia insensível. Não interessava o que fosse dito, nem mesmo a cor do seu rosto se alterava. Calado, prosseguia com suas obrigações, cofiando seu insigne bigode ralo. Somente nas vezes em que seus companheiros chegavam a extremos de enfiar pedacinhos de papel no totó da sua cabeça, ou amarrar bem apertado uma sandália na bainha de sua espada, ele fazia uma cara-abobada-de-não-se-sabe-se-está-rindo-ou-se-está-chorando e postulava: “Ei, vocês, não façam isso...”.
Os que olhavam aquele rosto, os que escutavam aquela voz, eram vítimas de um momentâneo sentimento de compaixão. (A pessoa que era maltratada por eles, essa pessoa não era apenas Goi, o Goi de nariz-vermelho-como-se-estivesse-com-frio. Eram várias outras pessoas que não conhecemos, um imenso número de alguéns que tomaram de empréstimo o rosto de Goi, a voz de Goi, e por meio deles denunciavam a crueldade no coração dos homens.) Esse sentimento, por sua natureza fugaz, conseguia se infiltrar em seus corações, porém só se conservava ali um instante. Somente um número muito reduzido desses indivíduos guardaria esse sentimento e levá-lo-ia para a eternidade.
Um desses indivíduos era um samurai sem posição. Um jovem oriundo da província de Tanba, dono de um débil bigode que lutava heroicamente para brotar sob o nariz. Óbvio que, no início, esse jovem — como todos — desdenhara do nosso Goi do nariz vermelho pelo puro prazer de desdenhar. Certo dia, porém, escutara aquela voz apatetada dizer: “Ei, vocês, não façam isso...”, e aquele súplica não arredou da sua cabeça. A partir de então, Goi projetava-se como uma criatura totalmente diferente. Pelo menos aos olhos desse jovem samurai. No rosto bobo de Goi, no rosto pálido, macilento e desnutrido de Goi, o rapaz vislumbrava um ser humano chorando — rosto franzido tal criança — devido à perseguição infligida pelo mundo. Para esse samurai sem posição, toda vez que pensava em Goi e em sua condição, via com nitidez a bestialidade inerente que o mundo nos joga repentinamente na cara. E, simultaneamente, o nariz-vermelho-de-geada e o bigode-tão-ralo-que-quase-se-podia-contar-os-fios de Goi de alguma forma lhe traziam alento ao coração.
Bom, mas isso se restringia a apenas um único indivíduo. À exceção desse homem, Goi prosseguia com sua vida de cão, mergulhado no menosprezo daqueles que o cercavam.
Goi não possuía um quimono que pudesse realmente ser chamado do quimono. Tinha apenas uma peça de roupa verde-escura e um hakama de mesma cor, tão, mas tão desbotados que não se poderia afirmar se eram índigo ou azuis. No pseudo quimono, a linha dos ombros estava ligeiramente caída, e a cor dos laços e acessórios — utilizados tanto como adereço quanto para impedir que a costura se desfizesse — tornou-se simplesmente irreconhecível. Já no hakama, a área ao redor de suas abas encontrava-se extraordinariamente avariada. Ao observar os gambitos despontando diretamente do hakama — Goi não vestia o hakama de baixo —, mesmo os menos maledicentes não podiam deixar de experimentar uma sensação miserável, pois pareciam olhar o claudicar de um boi esquálido arrastando a carroça de um pobre fidalgo. Tem mais: a espada que empunhava era feita de material deveras duvidoso. Se, por um lado, o metal do punho não era digno de confiança, por outro, o verniz da bainha encontrava-se inteiramente descorado. Junte-se a isso um arrastar desmazelado de sandálias, o costumeiro nariz avermelhado, um caminhar feito de passinhos, o sobe-e-desce da corcunda sob um céu gelado de inverno, uma cara de garoto pidão que fica olhando direita esquerda direita esquerda. É, não seria de estranhar se uma figura dessas se tornasse alvo de deboche até de vendedores ambulantes. Bem, na verdade, isso chegava a acontecer...
Certa ocasião, Goi passava por Sanjobomon, a caminho de Shinsen’en, quando avistou uns seis ou sete pirralhos ajuntados na beira da estrada fazendo alguma coisa. Pensando que brincassem de pião ou algo do tipo, decidiu dar uma espiadela por trás dos ombros do grupo: um pobre cachorrinho vira-lata estava preso pelo pescoço por uma corda e era fustigado, açoitado, vergastado pelo grupo. Até aquele momento, sempre que o medricas Goi sentia pena de algo ou alguém, jamais transformara seus sentimentos em ação, pois se sentia constrangido por aqueles à sua volta. Mas, como dessa vez os oponentes eram uns pivetes, sentiu-se imbuído de certa coragem. Então, fez uma cara songamonga, a cara mais songamonga de que era capaz, tocou no ombro da criança aparentemente mais velha e proferiu: “Não façam isso com o cão. Coitado do cão. Vocês batem nele, ele sente dor. Não judiem do cão.” Nesse instante, a criança olhou por cima dos ombros, virou-se e acarou com repugnância a figura lastimável de Goi. Estão lembrados das vezes em que o encarregado da repartição transmitia uma ordem a Goi e ele não entendia? Estão lembrados da cara que o encarregado fazia? Bem, a cara que o garoto fez foi bastante parecida.
“Não se intrometa”, disse por sua vez a criança, recuando um passo. Empertigou-se e, de seus lábios orgulhosos, saiu a frase: “O que foi? Seu... seu... nariz vermelho!”. Goi sentiu cada palavra golpear sua face, mas não porque seu teor pafioso tenha lhe tirado do sério. Absolutamente. Sentiu cada palavra golpear sua face porque achou lamentável se incutir tamanho embaraço por dizer coisas que não precisavam ser ditas. Então, dissimulou seu opróbrio sob um rosto asonsado, guardou silêncio e retomou seus passos rumo à Shinsen’en. Mais atrás, os seis ou sete pirralhos encolhiam os ombros, colocavam os dedos indicador e médio nas partes inferiores dos olhos — fazendo uma pequena pressão para baixo, a fim de deixar à mostra a parte interna vermelha —, projetavam a língua para fora e, com isso, completavam suas caretas de monstro. Não, Goi não se apercebeu de coisa alguma. Mas, mesmo que se apercebesse, que diferença isso faria a um ser tão pusilânime?
Seria correto afirmar que o protagonista da nossa história é um ser que veio ao mundo apenas para ser espezinhado, repelido, desdenhado? Um indivíduo sem nenhuma aspiração ou expectativa em relação à vida? Não, isso não seria correto. Goi cultivava, há uns cinco ou seis anos, uma predileção notável por algo chamado... sopa de cará.
Corta-se o cará em fatias finas, cozinha-se junto com caldo adocicado de hera e obtém-se uma nutritiva sopa de cará. Seu sabor é excelente, gostoso mesmo, e chegava a ser servido à mesa do imperador. Do imperador! Portanto, para pessoas do nível do nosso Goi, sentir o gosto dessa iguaria só mesmo uma vez por ano, nos grandes daikyo e rinji-no-kyaku promovidos pela nobreza. (Daikyo e rinji-no-kyaku eram banquetes que aconteciam na mesma data — ou seja, no segundo dia do ano-novo —, no palácio do regente e conselheiro-chefe do imperador. O daikyo era oferecido à família imperial, à corte e aos serviçais dos templos. O rinji-no-kyaku era realizado também pela nobreza, porém tendo como convivas pessoas da corte de cargo inferior ao de ministro. Fora isso, não havia nenhuma diferença especial entre os banquetes.) E, mesmo nessas ocasiões, o conceito “fartar-se de sopa” era sintetizado num ligeiro umedecer de lábios.
Portanto, o desejo de empanturrar-se de sopa de cará era, há tempos, a grande utopia de Goi. Claro que ele nunca contara esse desejo a ninguém, era segredo. Aliás, provavelmente nem ele próprio tinha plena consciência desse anelo. Contudo, não seria incorreto afirmarmos ser por essa veleidade que Goi vivia seus dias.
Existem pessoas que consagram toda uma vida atrás de um objetivo. Será realizado? Não será realizado? Elas não sabem. Mas, ainda assim, devotam seus dias a ele. E aqueles que riem dessa busca, que a consideram uma tolice, no final das contas não passam de meros espectadores da vida.
Não obstante, o grande sonho de Goi — leia-se tomar muita sopa de cará — revelou-se realidade palpável, plausível, inesperada e incrivelmente fácil. E o objetivo desta narrativa é e sempre foi, desde o início, relatar essa experiência.
No segundo dia do primeiro mês de certo ano, o regente Mototsune promoveu um rinji-no-kyaku em seu palácio. Goi e os demais samurais foram bem recebidos à mesa, da mesma forma que os convivas principais. Sentou-se e lá ficou, à espera das sobras. Isso porque, nessa época, o costume de jogar os restos do banquete para os mendigos e indigentes ainda não havia se sedimentado.
Embora fosse propalado que o rinji-no-kyaku fosse similar ao daikyo, e embora existisse um número relativamente grande de iguarias no banquete daqueles de cargo inferior ao de ministro, a qualidade dessas iguarias era duvidosa. Havia arroz glutinoso cozido no vapor e socado no pilão, arroz glutinoso frito e adocicado, abalone cozido no vapor, avezinha seca. Havia truta-salmoneja da região de Uji, caráceo de Aumi, pargo seco cortado em tiras, ovas de salmão, polvo grelhado, lagosta corpulenta. Havia laranjas grandes, laranjas pequenas, laranjas-mandarim, caqui adstringente descascado, adocicado e seco no espeto. Havia havia havia. E, dentre os pratos supracitados, havia a supracitada sopa de cará.
E havia Goi, que todo santo ano ficava na expectativa da sopa. Antecipava seu prazer. Mas, como sempre ocorria, a quantidade de pessoas à mesa era enorme, a quantidade de sopa era mínima e a porção que cabia a Goi, ínfima. Nesse ano em questão, ela beirava o nada. Mas, nesse ano em questão, ela, por sua vez, nunca parecera tão gostosa! E então Goi, contemplando amiúde o fundo vazio da tigela onde acabara de tomar a sopa, usou a palma da mão para enxugar uma gota que pairava sobre seu bigode ralo e disse, como que de si para si mesmo:
“Hum hum hum. Será que algum dia vou tomar sopa de cará até enjoar?”
“Rá! Ele diz que não tomou sopa de cará o suficiente!”, alguém escarneceu, mal acabara Goi de proferir sua sentença. Alguém experiente, experimentado, de voz enferrujada. Alguém de voz calma e arrojada qual o voo do gavião. Alguém que aparentava ser um bravo guerreiro. Goi emergiu a cabeça de sua giba e dirigiu um olhar poltrão a esse alguém. O dono da voz era Fujiwara Toshihito, samurai contratado como segurança do regente Mototsune, filho de Tokinaga, responsável pelas repartições públicas. Um homem de ombros largos, alto, robusto. Uma fortaleza de homem que, enquanto mastigava castanhas cozidas, empilhava várias e várias e várias tacinhas de saquê pretas sobre a mesa. E parecia bastante distante do que poderíamos chamar de um estado de sobriedade.
“Ah, sinto muito por você. É um fato realmente lamentável...”, prosseguiu Toshihito com uma entonação que amalgamava compaixão e desdém, focando os olhos no rosto erguido de Goi. “Se é esse seu desejo, não há motivo para preocupação: Toshihito lhe dará uma fartura de sopa de cará!”
Um cachorro maltratado durante toda a vida não se acerca facilmente de uma ocasional posta de carne que lhe é ofertada. Goi fez sua tradicional cara-abobada-de-não-se-sabe-se-está-rindo-ou-se-está-chorando, e ora fitava o rosto altaneiro de Toshihito, ora fitava o fundo vazio da tigela, ora o rosto de Toshihito, ora o fundo da tigela, ora Toshihito, ora tigela, Toshihito, tigela...
“Então, diga-me: não estaria interessado?”
“...”
“Vamos, diga-me: o que acha?”
“...”
Nesse ínterim, Goi apercebeu-se do olhar de todos os convivas convergindo para sua figura. Notou que, dependendo da forma como respondesse, seria mais uma vez alvo de troça dos presentes. No fundo no fundo, sentia que, no final das contas, não importava realmente qual fosse sua resposta, seria feito de bobo da mesma maneira.
Hesitou.
“Não há interesse de sua parte? Não irei forçá-lo a me acompanhar.” Se, nesse instante, a voz um tanto aborrecida de Toshihito não se fizesse presente, provavelmente Goi continuaria fitando ora o rosto altaneiro de Toshihito, ora o fundo vazio da tigela, ora o rosto de Toshihito, ora o fundo da tigela, ora Toshihito, ora tigela, Toshihito, tigela, para todo o sempre.
Porém, ao escutar tal sentença lapidar, Goi respondeu lépido: “Oh, não! Sim, sim. Muito agradecido, senhor. Sim, é uma honra, senhor!”.
Os convidados, todos, sem exceção, caíram em um só coro na gargalhada. “Oh, não! Sim, sim. Muito agradecido, senhor. Sim, é uma honra, senhor!”, macaqueou alguém. Com a gargalhada, as bandejas com laranjas amarelas e carmesins e as travessas onde estavam os gorros dos samurais se moveram em uníssono, como uma onda no mar. No meio da patuscada, aquele que ria mais alto, aquele que ria com mais disposição, era o próprio Toshihito.
“Se é assim, irei convidá-lo em breve!” Ao falar, franziu o rosto e fez uma pequena careta. É que a risada que subia acabou abalroando o saquê recém-ingerido que descia. “Estamos combinados?”
“Oh, sim sim. Muito agradecido, senhor. Sim, é uma grande honra, senhor!” Goi enrubesceu, tartamudeou e enovelou a mesma resposta. É escusado dizer que todos mais uma vez riram, riram e riram. O próprio Toshihito, que refez a questão apenas para escutar de Goi a mesma resposta, riu, riu e riu, ruidosamente, sacolejando seus ombros largos. Os homens tacanhos das terras do norte conheciam apenas dois modos de levar a vida. O primeiro era encher a cara de saquê. O segundo era rir, rir de tudo.
Ainda bem que, em pouco tempo, o foco da conversa acabou se dispersando. Embora todos destilassem seu escárnio, o fato de concentrarem a atenção exclusivamente na figura de Goi nariz-avermelhado-de-geada era um tanto repelente. Os tópicos variaram, foram daqui para ali, dali para acolá. Quando havia apenas uma réstia de saquê e uma miséria de aperitivos, a história que agregava a atenção da assistência era a de um certo samurai, aprendiz do funcionalismo público federal, que colocara ambas as pernas num dos lados do seu mukabaki — peça utilizada sobre o hakama, feito com pele de veado, urso ou tigre, empregada na montaria — e tentara montar num cavalo. Só Goi não prestava atenção, completamente alheio. Talvez porque as palavras “sopa”, “de” e “cará” tivessem se apoderado de todas as suas funções mentais. Mesmo tendo à frente um magnífico faisão assado, ele não moveu um centímetro seu hashi. Mesmo tendo à frente uma tacinha de delicioso saquê, ela não roçou seus lábios. Goi apenas colocou as mãos sobre os joelhos e ficou absorto a contemplar a tigela laqueada de preto vazia, o rosto afogueado até a raiz dos cabelos já um pouco grisalhos nas têmporas. Puro e ingênuo como uma donzela ante um miai — entrevista feita com um pretendente, visando matrimônio. E sorria, sorria...
Passaram-se quatro, cinco dias. Na manhã desse quarto — ou quinto — dia, dois homens trotavam tranquilamente seus cavalos na estrada rumo a Awataguchi, margeando o rio Kamogawa. O primeiro homem usava barba densa e negra, costeletas bem cuidadas, vestia um traje azul-celeste comum aos nobres da época, um hakama da mesma cor, e portava uma espada longa ornada com ouro e prata. Já o segundo era um samurai de uns quarenta anos e vestia apenas duas peças de roupa: um traje forrado de algodão, de espessura fina, sobre um quimono de seda verde-oliva-escuro-meio-azulado, embotado e miserável. A maneira de amarrar a faixa era negligente ao extremo. O nariz era avermelhado, e suas narinas estavam úmidas de ranho. Tudo, tudo o que dizia respeito a sua pessoa era abundantemente lamentável. Sim, também havia os cavalos que os transportavam. O da dianteira era um baio, o último, um potrinho malhado de uns três anos, ambos belos corcéis que faziam os vendedores ambulantes e samurais do caminho virarem e acompanharem com a vista seu trote. Atrás dos homens e dos cavalos, pelejando para acompanhar o passo dos animais, havia dois indivíduos a pé: o administrador dos bens pessoais do nobre e o servo responsável pelos cuidados com os animais. Bem, desnecessário dizer que essa era a procissão de Toshihito e Goi...
Embora fosse inverno, era um dia gostoso. Não havia nenhum vento para oscilar as folhas secas de artemísia nas margens, onde o som do gorgolejo da água, que se embrenhava nas brechas entre as pedras esbranquiçadas que ladeavam o rio, fazia-se audível. Os galhos despidos de folhas dos mirrados salgueiros voltados para o Kamogawa recebiam sutis raios de sol, assemelhando-se a caramelos rebuçados. Até o movimento da cauda de uma lavandisca, pousada na copa das árvores, projetava uma vívida sombra na larga estrada. A saliência se destacando por sobre a borda escura da cadeia montanhosa das Higashiyama era o ombro quase preto do monte Hiei, totalmente queimado pela geada, um veludo chamuscado, onde os fios verticais retorcidos foram substituídos por árvores desfolhadas pelo outono. Nesse ínterim, enquanto as incrustações de madrepérola das selas cintilavam sob o dia resplandecente, os dois cavaleiros vergastavam suavemente suas montarias, rumo à Awataguchi.
“Para onde o senhor está fazendo o favor de nos levar, senhor?”, questionou Goi, manuseando desajeitado suas rédeas.
“Logo ali. Nada tão longe que seja digno de preocupação.”
“Ah! Lá para os lados de Awataguchi, senhor?”
“Sim, sim... Que seja.”
Na manhã em que convidara Goi, Toshihito dissera que iriam para os arredores de Higashiyama, onde havia sítios em que brotavam águas termais. E o parvo Goi-do-nariz-vermelho levou o convite ao pé da letra. Estava há um bom tempo sem tomar banho, e seu corpo há alguns dias fora acometido de comichões. Além de ser convidado para uma lauta refeição à base de sopa de cará, imergiria em águas quentes e se higienizaria. Ah! Era um afortunado agraciado pelos deuses! Com esse pensamento em mente, montara no potrinho que Toshihito lhe trouxera. Contudo, naquele momento, Goi se apercebeu que Toshihito não tinha a menor intenção de deter-se nessas vizinhanças. Pra ser bastante sincero, enquanto nos prolongávamos nas explanações, Awataguchi já havia ficado para trás...
“Ué... Parece que não é Awataguchi, né?”
“Verdade. É um pouco mais adiante.”
Toshihito, sorriso estampado no rosto, evitou olhar para Goi. Em vez disso, continuou a instigar seu cavalo com tranquilidade. As casas beirando a estrada foram pouco a pouco se tornando escassas. Bandos de corvos podiam ser vistos sobre os extensos arrozais desolados de inverno, atrás de qualquer coisa para debicar. A pouca neve remanescente à sombra das montanhas era apenas indistinta névoa azulada. O céu estava aberto, e os ríspidos galhos pontiagudos dos sumagres pareciam alfinetá-lo, causando dor nos olhos e sensação de calafrio.
“Ah! Então é lá para os lados de Yamashina, né, senhor?”
“Não, não. Aqui é Yamashina. Nós iremos um pouco mais adiante.”
Sendo novamente bastante sincero, enquanto nos prolongávamos em novas explanações, Yamashina passou. Pelo jeito, não era ali o destino da procissão. Sekiyama, por sua vez, também ficou para trás. Por volta do meio-dia, detiveram-se diante do templo Miidera. Ali havia um monge conhecido de Toshihito. Os dois homens entraram, saudaram o bonzo e aceitaram o convite para almoçar. Finda a refeição, subiram nos cavalos e aviaram-se pelo caminho. Comparativamente, o trajeto que tinham pela frente era muito, mas muito mais ermo do que aquele pelo qual vieram até o momento. A fumacinha que sai das chaminés das casas, e que é avistada à distância, estava em número bastante reduzido. E essa época era famosa por seus salteadores, que infestavam os quatro pontos cardeais. Era uma época conturbada. Insegura. Afundando ainda mais em sua giba, Goi ergueu os olhos para Toshihito e perguntou:
“É mais pra frente ainda, senhor?”
Toshihito esboçou um sorriso. Aquele sorriso de criança que fez travessura quando está prestes a ser descoberta pelos adultos. As rugas franzidas na ponta do nariz e os músculos relaxados nos cantos dos olhos oscilavam entre o rir e o não-rir, o rir e o não-rir. Por fim, disse:
“Bem, na verdade, penso em levá-lo até Tsuruga.”
Sorrindo, Toshihito ergueu a vergasta e apontou-a para a abóbada celeste. Sob o chicote, o sol da tarde incidia no lago Biwa, cintilante, resplandecente.
Goi ficou todo confuso.
“Como assim, Tsuruga, senhor? O senhor diz aquela Tsuruga da província de Echizen, senhor?”
Goi já sabia, pois escutara essa história diversas e diversas vezes, que Toshihito, após tornar-se genro de Fujiwara Arihito — habitante de Tsuruga —, ficava a maior parte do tempo ali. Mas até aquele momento não cogitara que Toshihito tencionasse levá-lo até lá. Primeiro, como iriam fazer uma viagem livre de transtornos até as terras de Echizen, de acesso obstruído por inúmeras montanhas e rios, acompanhados por apenas dois criados? Depois, em toda parte corriam rumores de viajantes assassinados por salteadores. Goi mais uma vez ergueu os olhos para Toshihito e perguntou:
“Mas isso não entra direito na minha cabeça, senhor. Quando achei que era Higashiyama, não era. Era Yamashina. Quando achei que era Yamashina, não era. Era o templo Miidera. Agora o senhor me diz que não era nada disso. É para Tsuruga que nós vamos, pra Tsuruga de Echizen. Mas, como assim, senhor? Se o senhor tivesse me falado isso antes, eu teria trazido uns criados. Tsuruga, senhor? Mas isso não entra direito na minha cabeça...”, expôs Goi, murmurando entre dentes, quase se debulhando em lágrimas. Se não estivesse imbuído de coragem e determinação para fartar-se de sopa de cará, talvez se desirmanasse de Toshihito e retornasse sozinho para Quioto.
“Considere que Toshihito sozinho vale por mil homens. Pensar nos possíveis percalços do caminho? Desnecessário!”, respondeu Toshihito, pernóstico, franzindo o sobrolho de leve, contemplando a perplexidade de Goi. Chamou à sua presença o criado encarregado de seus bens pessoais, transferiu para suas costas a aljava que este transportara até o momento, recebeu de suas mãos um arco esmaltado de laca preta, colocou-o apoiado na lateral da sela, e adiantou seu cavalo.
Uma vez que Toshihito avançou, não havia alternativa para o capadócio Goi do que segui-lo sem objetar. Com o coração confrangido, contemplou a planície inóspita e desolada que se estendia à sua volta e entoou de maneira claudicante o sutra da misericordiosa Kannon, do qual tinha vaga lembrança. Num vai-não-vai, estimulou seu potrinho em sua pseudomarcha, praticamente roçando seu nariz-avermelhado-de-geada no arção dianteiro da sela. E foi. Vacilante. Instável. Mas foi.
Os prados, ecoando os cascos dos cavalos, eram um vasto tapete de eulálias amarelas secas. Os esparsos charcos gelados espelhavam o céu azul, nos fazendo cogitar: chegará o dia em que o céu irá congelar, ficando na forma que está refletida nos charcos? Nesses confins, uma cordilheira — de costas para o sol, sem receber a luz que faria cintilar seus resquícios de neve — era uma extensa faixa de cor arroxeada. Aglomerações desoladas de eulálias secas constantemente obstruíam a vista dos dois criados dessa vasta extensão púrpura. Em determinado momento, Toshihito virou-se de chofre para Goi e falou:
“Ah! Ali! Ali está um bom mensageiro. Pedirei que leve consigo um recado para Tsuruga.”
Goi não compreendera muito bem o teor das palavras de Toshihito, então guiou cautelosamente seus olhos na direção indicada pelo arco. Desnecessário dizer que aquele não era exatamente o tipo de paragem donde figuras humanas despontassem por todos os lados. Despontou apenas uma raposinha. Uma raposinha de pelos de cores quentes, exposta à luz do sol-das-almas, emergindo de um emaranhado de arbustos constituído de vergônteas, gavinhas de videira silvestre e sabe-se-lá-o-quê.
Mas eis que, enquanto descrevíamos a cena, a raposinha disparou em desabalada carreira, correndo correndo correndo sem parar. Toshihito, de súbito, fez soar seu açoite, disparando o cavalo em seu encalço. Goi, da mesma forma, disparou no encalço de Toshihito, esquecendo que era um medricas. Os criados, obviamente, não podiam ficar para trás, e dispararam atrás de Goi. Durante alguns instantes, o ruído dos cascos dos cavalos escoiceando as pedras sulcava a quietude do descampado. Logo em seguida, Toshihito interrompeu o galope do seu baio. Não há como saber onde nem como nem quando, mas ele já estava com a raposinha em suas mãos, suspensa pelas patas traseiras, de cabeça para baixo, dependurada, ao lado da sela. Acossara o animal em algum local onde ele não pudesse mais correr, encurralara-o sob seu corcel e então o apanhara com as mãos? Quem sabe? Goi, agitado, enxugando as gotas de suor acumuladas em seu bigode ralo, enfim chegara com seu potrinho ao local.
“Raposa! Escute bem!”, exclamou Toshihito, imperativo, com uma voz deliberadamente rígida, segurando a raposinha bem alto, na linha dos olhos. “Você! Esta noite, dirija-se ao palácio de Toshihito, em Tsuruga, e diga aos criados o que se segue: ‘Toshihito está vindo da capital com um convidado inesperado. Amanhã de manhã, por volta das dez horas, estejam nos arredores de Takashima para recebê-los. Tragam ainda dois cavalos selados’. Compreendido? Não se esqueça!”
Proferida a última sentença, Toshihito sacudiu a raposinha e lançou-a lá para longe, matagal adentro.
“Puxa, olha como corre!”, aplaudiam, davam vivas e sapateavam os dois criados — finalmente haviam alcançado o grupo — enquanto acompanhavam a trajetória da raposinha que escapulia e abria distância. Só se via o dorso cor-de-folha-seca do animal, que corria corria corria, para o infinito e além. Só se via o dorso acastanhado-sob-o-sol-poente deslocando-se alucinado, sendo praticamente impossível distingui-lo das pedras que circundavam as árvores. De onde estava, a procissão visualizava a raposinha com bastante nitidez, parecia até que poderiam pegá-la com as mãos. Enquanto acompanhava a disparada da raposinha, o grupo aportou inopinado em um terreno elevado, donde a campina iniciava um suave declive que acabava por se unir ao leito seco de um rio. Daí o porquê da vista privilegiada.
“Nossa! Mas que disposição tem esse bicho, né?”, desfiou Goi, dando asas a sua admiração ingênua. Ao término do ocorrido, mirou reverente o rosto daquele grande guerreiro, daquele homem sem educação ou boas maneiras, que comandava até mesmo as raposas. Em sua cabeça, não existia espaço para divagar sobre o imenso abismo que havia entre ele e Toshihito. A extensão da área submetida à vontade de Toshihito era tão grande, mas tão grande, que Goi simplesmente achou que poderia incluir a sua vontade dentro dela. Apenas isso já lhe trouxera certa confiança e coragem, fazendo-lhe se sentir um homem livre. Sentimentos como a lisonja e a adulação muitas vezes nascem em momentos como esse, de forma bastante razoável, lógica e compreensível. Por isso, o leitor não deve alimentar nenhum tipo de dúvida ou ceticismo quanto ao caráter de Goi, que de agora em diante se assemelhará um pouco ao de um arlequim. Ou de um cabotino.
Após ser deitada fora, a raposinha desceu correndo correndo correndo o declive, saltitou por entre as pedras que margeavam o leito seco do rio, e subiu correndo correndo correndo até o declive localizado mais além. Quando subia, virou-se e olhou por cima dos ombros. A procissão ainda estava no topo do agora distante declive, alinhada. Ah! Como eles, samurais, criados e cavalos, se mostravam pequeninos, como os dedos de uma mão. Expostos diretamente aos últimos raios do crepúsculo, o baio e o potrinho malhado delineavam-se com precisão, mais parecendo pinturas executadas sobre a tela que era o céu gelado de inverno.
A raposinha voltou sua cabeça para frente e retomou sua desabalada carreira em meio às eulálias secas. Correndo correndo correndo.
Na manhã do dia seguinte, conforme o previsto, a procissão chegou aos arredores de Takashima por volta das dez horas. Takashima era um lugarejo voltado para o lago Biwa, com umas tantas casinhas de colmo borrifadas aqui e acolá. Pinheiros cresciam às margens do lago, envolvidos pela água que investia contra a costa com uma ondulação cinzenta. A superfície do lago, fria e desolada, lembrava um espelho há muito deslembrado de polir. Ao chegar, Toshihito virou-se, dirigiu o olhar para Goi e falou: “Olhe naquela direção. Os homens que vieram nos receber se aproximam”.
Era verdade. Havia uns vinte ou trinta homens, trazendo consigo dois cavalos selados. Homens a cavalo e homens a pé, todos com as mangas dos quimonos flutuando ao sabor do vento glacial, locomovendo-se céleres por entre os pinheiros que cresciam às margens do lago, rumo a Toshihito e seu séquito. Quando julgaram estar à distância apropriada, os que estavam a cavalo apearam e os que estavam a pé agacharam, acocorando-se na beira do caminho. Ambos aguardaram respeitosamente o acercamento de seu senhor.
“A raposa desempenhou mesmo seu papel de mensageira, né, senhor?”
“De fato. Esse tipo de bicho tem essa qualidade. É bicho que assume várias formas, é bicho travesso. O serviço que lhe ordenei não foi nada.”
Enquanto Toshihito e Goi dialogavam, chegaram ao local onde os vassalos aguardavam. “Ah! Que canseira!”, exclamou Toshihito. O cortejo acocorado pôs-se de pé ligeiro, pegou pelos bocais os cavalos do seu senhor e do convidado do seu senhor e passou a conduzi-los. A partir daí, todos ficaram alegres, jubilosos, com ótima disposição.
Toshihito e Goi apearam de seus cavalos. Mal se sentaram no tapete de pele estendido sobre o solo, um vassalo de cabelos grisalhos dentro dum quimono cor-de-casca-de-cipreste acercou-se e, diante da figura de Toshihito, enunciou: “Ontem à noite, aconteceu uma coisa bastante estranha”.
“O que aconteceu?”, inquiriu por sua vez Toshihito, tolerante e magnânimo, estimulando Goi a se servir dos cilindros de bambu com saquê e das marmitas de madeira trazidas pelos vassalos.
“Pois é, senhor! Noite passada, lá pelas oito horas, a nobre esposa do senhor perdeu os sentidos. Assim, de repente. ‘Eu sou a raposa de Sakamoto! Estou aqui hoje porque vosso senhor ordenou-me que lhes transmitisse uma mensagem. Aproximem-se e escutem bem.’ Assim falou. Aí, quando todos nós chegamos bem perto dela, a nobre esposa do senhor disse: ‘Vosso senhor está vindo da capital com um convidado inesperado. Amanhã de manhã, por volta das dez horas, estejam nos arredores de Takashima para recebê-los. Tragam ainda dois cavalos selados.’ Assim nos ordenou.”
“Coisa estranha, né?”, aquiesceu Goi, ora olhando para o rosto de Toshihito, ora olhando para o rosto do vassalo, ora Toshihito, ora vassalo, dando mostras de estar bastante satisfeito com seu comentário.
“Mas não foi só isso que a nobre esposa do senhor disse. ‘Não se atrasem! Se se atrasarem, serão repreendidos por vosso senhor!’ Vossa esposa tremia, chorava sem parar. Foi horrível.”
“Bem, e depois, o que aconteceu?”
“Depois, a nobre esposa do senhor adormeceu, inocente. Até a hora da nossa partida, parecia não haver despertado.”
“O que acha? Hem?”, ufanou Toshihito, olhando Goi, depois que o vassalo encerrou a narrativa. “Toshihito manipula até as bestas selvagens!”
Goi escarafunchou seu nariz vermelho e meneou suavemente a cabeça. Então, papa-moscas, escancarou a boca e, afetado, exclamou; “Realmente, senhor, realmente! É digno de admiração. Estou muito admirado, senhor, realmente.” Algumas gotas do saquê recém ingerido aderiam-se ao bigode ralo de Goi.
Foi na noite daquele mesmo dia. Num dos aposentos do palácio de Toshihito, Goi contemplava olhando-mas-ao-mesmo-tempo-não-olhando a luz duma candeia, absorto, sem pestanejar. Assim passou uma longa noite insone. Em sua mente, uma miríade de elementos vinha à tona: as montanhas de pinheiros, os riachos e os campos desolados que transpusera — acompanhado de Toshihito, que papeara com os cridos o trajeto todo — até sua chegada crepuscular a Tsuruga. Mesmo o capim, as folhas das árvores, as pedras, o cheiro da fumaça das queimadas... Tudo emergia, submergia e emergia na mente de Goi. Particularmente quando, imerso na neblina do lusco-fusco, alcançou esgotado o palácio de Toshihito. E quando pôde finalmente contemplar a chama rubra do carvão em brasa do braseiro? Ah, que sentimento de alívio! E agora, deitado, rememorando os fatos... Como tudo parecia pertencer a um passado remoto! Então Goi, feliz da vida, enfiado em um aristocrático quimono amarelo com uns doze centímetros de enchimento de algodão, esticou suas pernas e vagamente observou sua figura.
Sob o quimono que Toshihito emprestara, Goi vestia duas roupas de enchimento grosso de algodão ocre, uma sobreposta à outra. Estava tão bem aquecido que ocasionalmente chegava a transpirar. Claro que o porre de saquê ingerido no jantar contribuiu com sua cota, além de conduzir Goi às fronteiras da sobriedade. Estava tão inebriado que nem mesmo o amplo jardim atapetado de geada localizado ao lado de sua cabeceira, separado dela apenas por um postigo de treliça, o perturbava. Comparado à época em que vivia num quartinho no alojamento da corte, em Quioto... Ah, agora tudo tudo tudo era de uma diferença atroz. Como as nuvens no céu e a lama na terra.
Entretanto, havia uma espécie de desassossego no coração do nosso pobre Goi. Algo não se harmonizava com o estado atual das coisas. Em primeiro lugar, o tempo não escoava, ele gotejava. Por outro lado, tinha vontade de que o amanhecer — leia-se tomar muita sopa de cará — não raiasse tão depressa. E esses dois sentimentos contraditórios, após duelarem entre si, alojaram-se no fundo do seu coração, em desalinho devido às repentinas mudanças das circunstâncias. Ficaram lá — no coração em desalinho —, gélidos como as contradições meteorológicas. E esse frio da alma, somado ao calor do corpo, tornou-se um empecilho ao sono.
Então, a voz de alguém bradando no amplo jardim chegou aos ouvidos de Goi. A julgar pela voz, esse alguém parecia o vassalo de cabelos grisalhos e quimono cor-de-casca-de-cipreste que os recebera nos arredores de Takashima. E ele parecia transmitir algo. A voz, ressequida e murcha, se propagava na geada, e cada palavra gelava os ossos de Goi.
“Todos os servos! Todos os servos! Ouçam, e ouçam bem! Conforme a vontade do nosso senhor, cada um de vocês, velhos e jovens, jovens e velhos, deve trazer um cará de aproximadamente nove centímetros de diâmetro por cento e cinquenta centímetros de comprimento, até a manhã do dia de amanhã, por volta das seis horas. Não se esqueçam: até as seis horas!”
A ordem foi repetida duas, três vezes. Pouco tempo depois, o vaivém humano cessou e o ambiente retornou à sua antiga condição de serena noite de inverno. Nessa serenidade, ressoava o azeite da candeia. Seu lume tremeluzia, tal qual seda natural vermelha. Goi fechou a boca e mordeu os dentes, reprimindo um bocejo. Novamente, imergiu em pensamentos e meditações.
Bem, o vassalo falara sobre trazer cará. Devia ser o cará que seria utilizado na feitura da sopa de cará. É, não havia dúvidas quanto a isso...
Enquanto refletia sobre carás e outros fatores externos, Goi esquecera por instantes dos sentimentos que esfriavam seu coração. Mas eles regressaram, e mais fortes. Principalmente o desejo de não realizar o desejo de tomar bastante sopa. Ele grudou no eixo central de seus pensamentos e lá ficou, martelando, tirânico. A simples perspectiva de que iria realizar seu sonho — leia-se tomar muita sopa de cará — sem muito esforço parecia transformar sua espera paciente, resignada e perseverante, sua espera de anos e anos, sua espera que chamaríamos de utópica... Enfim, transforma sua espera numa imensa empreitada inútil, num martírio desnecessário. Goi gostaria que ocorresse alguma coisa, qualquer coisa, que o obstaculizasse de tomar sopa de cará por enquanto. E que, após tudo resolvido e o obstáculo superado, aí sim, pudesse encher a panturra. Era desse modo que Goi queria que as coisas acontecessem. De verdade. Com tais elucubrações girando e girando e girando ao redor de sua cabeça como um pião, Goi, exausto, finalmente caiu num sono de pedra.
Dormiu pensando em cará, acordou pensando em cará. Na manhã seguinte, ao abrir os olhos, Goi de imediato levantou o postigo de treliça e olhou para fora. Aparentemente, dormira demais e perdera a hora. Não parecia ser seis horas da manhã. Sobre cinco ou seis amplas esteiras de junco dispostas sobre o amplo jardim, havia uma pilha de uns dois ou três mil carás grande como toras. Carás! Carás! Carás! Uma montanha de carás, tão grande e alta que roçava a aba do beiral da cobertura projetada em diagonal. Ao olhar para a montanha, Goi notou que ela era toda composta por carás, carás imensos, carás de nove centímetros de diâmetro por cento e cinquenta centímetros de comprimento.
Goi esfregou bem esfregado os olhos recém despertos e rondou atônito o perímetro ao seu redor. Carás! Carás por toda parte! No amplo jardim, estacas fincadas sustentavam cinco ou seis caldeirões de ferro dispostos lado a lado sobre o fogo. Algumas dezenas de jovens criadas vestindo túnicas brancas moviam-se ao redor dos caldeirões. Havia pessoas acendendo o fogo, pessoas atiçando o fogo, pessoas remexendo as cinzas, pessoas sorvendo caldo de hera doce de tinas de madeira retinta e jogando-o dentro dos caldeirões de ferro. Todas envolvidas no preparo da sopa de cará. Todas ocupadas até a raiz dos cabelos. Debaixo dos caldeirões, erguiam-se colunas de fumaça. De dentro dos caldeirões, irrompia o vapor. Esses dois elementos se mesclaram à neblina da agonizante madrugada e, juntos, cobriram toda a superfície do amplo jardim como uma cortina pardacenta, sob a qual não se distinguiam os objetos com clareza. Do limbo que era essa cortina, apenas o cinabre das labaredas que se insurgiam debaixo dos caldeirões se sobressaía. Aquilo que os olhos viam, aquilo que os ouvidos ouviam, tudo, sem exceção, era tumulto e clamor. Um campo de batalha. Um local consumido por incêndios.
Chegando as coisas ao ponto em que chegaram, Goi recomeçou a pensar. Vendo esses carás descomunais serem despejados dentro desses caldeirões descomunais, atinou que viajara de Quioto a Tsuruga apenas pelo desejo de tomar sopa de cará até enjoar. E não fora uma decisão irrefletida. Quanto mais ponderava sobre isso, mais considerava vergonhosa e lamentável toda aquela situação. A essas alturas, o apetite de Goi — aquele apetite que alimenta nossa compaixão por ele — já estava reduzido à metade.
Uma hora depois, Goi — acompanhado de Toshihito e de seu sogro, Arihito — sentou-se à mesa para o desjejum. À sua frente, uma cuba com capacidade para dezoito litros e, dentro da cuba, a temível sopa de cará! Até a borda. Minto: transbordando. Era um mar de sopa de cará. Dava até medo. Goi, que há pouco observara dezenas de jovens viçosos cortarem com vigor os monstruosos carás que se amontoavam até o beiral do telhado, articulando destros as lâminas das facas, raspando os tubérculos com movimentos rápidos, um atrás do outro, um atrás do outro, sem deixar nenhum de fora. Goi, que acompanhara as criadas indo e vindo, vindo e indo, apressadas, desnorteadas, apanharem porções e porções de cará com conchas e jogarem-nas nos caldeirões de ferro. Goi, que fitara os carpas sumirem um a um das amplas esteiras de junco, até não restar mais nada. Goi, que espreitara as várias colunas de vapor emergirem desordenadas do interior dos caldeirões de ferro e ascenderem ao límpido céu da alvorada, com sua fragrância de cará e hera adocicada. Goi, que contemplara cada cena desfilar diante de seus olhos, agora nutria um grande fastio por sopa de cará, principalmente aquela que sobejava da cuba diante de si. Bem, até que isso é bastante razoável e compreensível. Goi, ainda sem provar da sopa, enxugou meio sem jeito o suor da testa.
“Vamos, sirva-se! Não foi você que disse ter o desejo de tomar sopa de cará até enjoar? Então, por favor, não faça cerimônia. Sirva-se. Vamos, esteja à vontade.”
O sogro Arihito ordenou a alguns meninos aprendizes que alinhassem sobre a mesa mais algumas cubas de prata. Em todas elas havia a temível sopa de cará. Até a borda. Minto: transbordando. Goi apanhou metade do volume de um das cubas e despejou-o num grande recipiente de louça. Relutou. Fechou os olhos. Relutou. Então, entornou, emborcou, escorropichou, bebeu de um trago a sopa, contra a vontade. Como se não bastasse, seu nariz vermelho tornou-se mais vermelho do vermelho que era.
“É como meu pai disse: não faça cerimônia. Dispensamos a cerimônia aqui”, proferiu Toshihito, ao lado de Goi, empurrando nova cuba em sua direção, sorrindo maliciosamente.
Goi estava fraco. Debilitado. Toshihito e Arihito falavam em não fazer cerimônia, mas desde que sentou-se à mesa, Goi não tinha gana de sorver sequer uma tigela de sopa! Agora, após uma luta em glória, capitulara ante meia cuba. Pior. Se, insurrecto, tentasse tomar mais, o líquido sem sequer transporia sua garganta: seria restituído sob a forma de vômito. Contudo, se colocasse em palavras seus sentimentos, seria o mesmo que esnobar a enorme gentileza dos anfitriões. Por isso, Goi fechou novamente os olhos, relutou, e emborcou mais um terço da metade restante da sopa de cará da primeira cuba. Agora não poderia sorver nem sequer mais um gole.
“Muito agradecido, senhor. Sim sim. Realmente muito agradecido, senhor. Já comi bastante, estou satisfeito”, respondeu Goi, incoerente. Aparentava estar deveras debilitado, e, vendo as gotinhas de suor pendendo da ponta do seu nariz-vermelho-de-geada e na extensão do seu bigode-tão-ralo-que-quase-se-podia-contar-os-fios, tínhamos a impressão de não ser inverno.
“Ah! Mas, afinal de contas, comeste muito pouco! Parece um passarinho. Hum, nosso convidado parece estar fazendo cerimônia. Ei! Ei! Vocês! O que estão fazendo? Vamos, sirvam-lhe mais. Vamos, vamos.” Os meninos aprendizes, obedecendo a forma imperativa das palavras de Arihito, sorveram mais sopa de cará de uma nova cuba e colocaram-na no recipiente de louça. Goi mexeu afoito as mãos, como se enxotasse uma mosca, indicando que não não não, não poderia aceitar mais.
“Não não não! Não posso aceitar mais, senhor. Sim sim. Já comi bastante, estou satisfeito. Desculpe, senhor, desculpe.”
Se, nesse exato momento, Toshihito não indigitasse subitamente o beiral do telhado da residência localizada no lado oposto e exclamasse: “Olhem! Ali!”, Arihito talvez estimulasse Goi a tomar sopa de cará até o final dos tempos. Felizmente, a voz de Toshihito atraiu a atenção de todos na direção do beiral do telhado. O sol nascente incidia precisamente ali, naquela cobertura forrada com casca de cipreste onde, após alguns instantes, um animal selvagem, com seus pelos lustrosos purificados pela ofuscante alvorada, sentou-se manso. Olhando direito, via-se que era o bicho de anteontem, o bicho que Toshihito capturara durante a travessia pelos campos desolados. A raposinha dos prados. A raposinha das campinas. A raposinha de Sakamoto!
“A raposa parece estar com vontade de participar do banquete. Homens! Sirvam-lhe algo.” A ordem de Toshihito foi cumprida antes mesmo do término de suas palavras. A raposinha saltou do alto do beiral e imediatamente tomou parte na refeição solene, refestelando-se de sopa de cará.
Goi, enquanto contemplava a raposinha se empanturrar, lembrou-se de si próprio, rememorando seu passado com uma saudade enorme dentro do peito. Goi, alvo de escárnio por um sem-número de samurais. Goi, chamado de nomes até por pirralhos de Quioto. “O que foi? Seu... seu... nariz vermelho!”. Goi, quimono e hakama de cores desbotadas, vagueando pela avenida Suzaku, cachorro vira-lata. Goi, isolado, solitário, digno de pena.
Porém, no mesmo instante, lembrou-se do Goi feliz, que resguardava sozinho seu mais precioso tesouro. Goi, o defensor solipsista do seu sonho de fartar-se de sopa de cará! Junto ao alívio de não precisar tomar sopa além do que já havia tomado, sentiu secar o suor do rosto, a começar pela ponta do nariz vermelho.
Embora o céu estivesse limpo, fazia frio na manhã de Tsuruga, um frio que se infiltrava pelo corpo. Goi, aparvalhado, cobriu o nariz, virou-se para a cuba de prata e soltou um espirro alto.
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